segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

REYNALDO SOARES DA FONSECA*


A ATUAÇÃO JURISDICIONAL, DE OFÍCIO, NA FASE PRÉ-PROCESSUAL PENAL ( LEI 11.690/2008): INOVAÇÃO E INCONSTITUCIONALIDADE.

*Juiz Federal da 22ª Vara/DF, convocado para o TRF/1ª Região.


1. Sistema acusatório no processo penal brasileiro

É sabido que três são os sistemas processuais utilizados na evolução histórica do Direito Processual Penal: a) o inquisitivo, que tem suas raízes no Direito Romano, seu apogeu no Direito Canônico, a partir do século XV, e seu declínio com a Revolução Francesa. Inexistem, nele, regras de igualdade e liberdade processuais e as fases do processo são desenvolvidas por impulso oficial; b) o acusatório, que tem suas raízes na Grécia e em Roma, florecendo, após a Revolução Francesa, na Inglaterra e na França. Nos dias atuais, tal sistema, adotado na maioria dos países americanos e em diversos países da Europa, pressupõe uma relação processual, com a participação, em pé de igualdade, do autor e do réu, sobrepondo-se a eles a atuação do Juiz, como órgão imparcial de aplicação da norma. Além da efetivação do princípio do contraditório, como garantia do cidadão, a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou o próprio Estado. Logo, as funções de acusar, defender e julgar são conferidas a pessoas diversas, sendo incabível ao juiz iniciar o processo ( ne procedat judex ex officio); c) o misto, que tem seu desenvolvimento na Europa Continental do Século XIX, é adotado, hoje, em alguns países europeus e até na América Latina (Venezuela). Tal sistema combina elementos dos sistemas anteriores e é constituído de duas etapas: a antecedente (instrução inquisitiva: investigação preliminar e instrução preparatória, esta a cargo de um Juiz Instrutor ), sem participação da defesa, e a posterior (juízo contraditório – julgamento).

No Direito pátrio, prevalece o sistema acusatório, considerando o regramento consagrado nos arts. 5º, incisos LIII, LV e LIX; 92 a 126 e 129, inciso I, da Constituição da República de 1988. Tal sistema, todavia, não é puro, tanto que o Magistrado tem, obrigatoriamente, o controle das garantias constitucionais dos cidadãos, mesmo na fase pré-processual (exemplos: exame de pedidos de liberdade provisória; deferimento de provas cautelares; decretação de prisões preventiva ou temporária; de busca e apreensão, de interceptação telefônica, etc.) e, após iniciado o processo, pode agir até mesmo de ofício, em busca da verdade material, uma vez que a relação processual já restou estabelecida (vide a redação anterior do art. 156 da Lei Adjetiva Penal).

Com efeito, na fase preparatória facultativa, em que a Autoridade Policial realiza uma investigação inquisitorial, com o objetivo de formar a opinião da acusação, a participação do Estado-Juiz é de controle das garantias supramencionadas. Não há a figura do Juiz instrutor.

Contudo, conforme já dito, nascida a relação processual, após a iniciativa indispensável da parte acusadora (MPF ou o ofendido, conforme o caso), o processo penal passa a ser, no Brasil, eminentemente contraditório, público e escrito. Embora o ônus da prova incumba às partes, o Juiz pode determinar, de ofício, quaisquer diligências para dirimir controvérsia sobre ponto relevante, pois o magistrado não é, na fase processual propriamente dita, um mero espectador inerte na produção de provas. Na realidade, vale a pena recordar, no tópico, que o conjunto probatório produzido na instrução processual penal objetiva formar o livre convencimento do julgador na busca da verdade real.

2. Reformas Setoriais do processo penal brasileiro. Inovação da Lei 11.690/2008 – Nova redação do art. 156, I, do C.P.P.


É indiscutível que o Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 envelheceu e deve adaptar-se aos novos tempos, especialmente ao mundo da cibernética, à complexidade das relações sociais e humanas daí decorrentes e aos princípios e garantias processuais consagrados na Constituição Cidadã.

A sociedade exige, mais do que nunca, a efetividade das normas jurídicas vigentes, seja no âmbito cível, seja na seara penal, não admitindo mais uma estrutura processual arcaica e ultrapassada, sem qualquer conexão com a realidade contemporânea.

De outra parte, a reforma legislativa não pode ser conduzida pela pauta da mídia, para dar respostas imediatas e desconexas ao tecido social. Não se deve perder de vista o sistema processual penal como um todo, preservando-se, sempre, os direitos e as garantias constitucionais, especialmente quanto ao binômio indivíduo x coletividade. Nessa perspectiva, os princípios da celeridade processual, da efetividade e do integral respeito aos direitos fundamentais e ao Estado Democrático de Direito devem ser a tônica de qualquer interpretação processual reformista.

Nessa linha de raciocínio, pelas mesmas dificuldades conhecidas na reforma do processo civil, os Poderes do Estado Brasileiro optaram por um reforma pontual do Código de Processo Penal. No ano próximo findo (2008), dando continuidade à reforma pontual do referido Estatuto Processual, restaram editadas três novas leis. A Lei 11.689, de 09 de junho de 2008, que alterou sensivelmente o procedimento dos crimes dolosos contra a vida. A Lei 11. 690, da mesma data, que modificou a disciplina de prova. A Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, que alterou os procedimentos comum, ordinário e sumário. Mais recentemente, editou-se a Lei 11.900, de 08 de janeiro de 2009, que legitima, excepcionalmente, a prática de ato processual, pelo sistema de videoconferência. Aguarda-se, ainda, para este ano, a aprovação de leis que modificam a sistemática das medidas cautelares penais ( Projeto de Lei 4.208/2001) e dos recursos e ações autônomas de impugnação ( Projeto de Lei 4.206/2001).

É evidente que as referidas mudanças processuais ocorridas ensejarão amplos e acirrados debates de natureza constitucional e de interpretação infraconstitucional. Neste breve artigo, porém, pretende-se tratar somente de um aspecto específico do referido conjunto de reformas setoriais do processo penal pátrio: a questão da constitucionalidade da atuação jurisdicional, de ofício, na fase pré-processual, assegurada pela nova redação do art. 156, inciso I, da Lei Adjetiva Civil, dada pela Lei 11.690/2008.

No ponto, o legislador brasileiro não apenas consolidou a diretriz pretoriana já consagrada no sentido de que o magistrado, na instrução processual, não é um mero espectador, mas pode e deve interferir na sua produção, ordenando, inclusive, de ofício, a realização de diligências e provas, na busca da verdade real. O Parlamento, de forma inteiramente inovadora, foi mais além: flexibilizou nosso sistema acusatório e o próprio princípio da iniciativa das partes, autorizando o Estado-Juiz a produzir provas, de ofício, na fase pré-processual. Alterou, portanto, a premissa de que o princípio do impulso oficial pressupõe, necessariamente, a efetivação do princípio da iniciativa das partes. Veja-se, pois, a alteração noticiada:

A antiga redação do art. 156 do CPP tinha o seguinte teor:

“A prova da alegação incumbirá a quem o fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Já a redação atual é a seguinte:

“A prova da alegação incumbirá a quem o fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I. ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, a adequação e proporcionalidade da medida;
II. determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Com efeito, embora a Lei 11.690/2008 tenha mantido o mesmo objeto no referido art. 156 (ônus da prova e os poderes instrutórios do juiz), introduziu alteração significativa dos poderes do magistrado, ampliando-os para dizer que podem ser utilizados antes mesmo de iniciada a ação penal.

Tal regramento é, realmente, inovador e polêmico, sendo necessário seu exame à luz da Constituição e do modelo acusatório do processo penal que a Lei maior consagra.

3. A interpretação do art. 156, I, do Código de Processo Penal, conforme a Carta Magna de 1988: controvérsias.

Como já dito, em matéria probatória, a atribuição de poderes ao juiz, sem a iniciativa das partes, é tema extremamente polêmico, tanto na esfera do processo civil quanto no âmbito do processo penal, uma vez que coloca em confronto os valores fundamentais da imparcialidade dos julgamentos e da busca da verdade completa dos fatos.

Felizmente, o sistema acusatório brasileiro foi mitigado tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, que passaram a rejeitar a idéia do magistrado como mero espectador, totalmente passivo diante das atividades das partes, principalmente na justiça criminal. Consagrou-se, portanto, em relação às provas e diligências, colhidas na instrução processual, a possibilidade da atividade jurisdicional de ofício, mesmo porque todo o conjunto probatório colhido é destinado ao livre convencimento do julgador, que, nos termos do art. 93, IX, da CF/88 e do art. 155 do CPP, deve fundamentar sua decisão, em regra, apenas nos elementos probatórios que passaram pelo crivo do contraditório, a fim de possibilitar, inclusive, a impugnação recursal pertinente.

Nesse sentido, pondera a festejada Professora Ada Pellegrini Grinover que o magistrado moderno deve viabilizar o efetivo contraditório, assumindo uma posição ativa na fase instrutória, determinando, inclusive e se necessária, a realização de provas. Não pode, pois, ficar satisfeito com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova. [1]

Acontece que tal postura pressupõe a lide instaurada ( iniciativa das partes) e os consagrados princípios do impulso oficial e da busca da verdade real. Na fase pré-processual, todavia, a relação processual ainda não foi estabelecida. A acusação procura elementos de convicção e a defesa pode, sim, pretender medidas que acautelem seus direitos. A participação do magistrado, nesse momento, então, é apenas de controle das garantias constitucionais, a fim de não permitir excessos e de garantir o monopólio da atividade jurisdicional do Estado.

Não me parece, portanto, possível a intervenção direta e de ofício do Estado-Juiz, na fase anterior ao início da ação penal ( investigativa), sem que as partes demonstrem concretamente interesse para litigar ou para prevenir direitos. Pensar diferente, data venia, significaria, subverter o sistema acusatório, com manifesta ofensa aos princípios do devido processo legal e do próprio Estado Democrático de Direito.

Se a prova a ser produzida, na fase pré-processual, é urgente e relevante, cabe à parte que tem interesse direto na sua realização, efetivar sua postulação ao Estado-Juiz, ainda que durante o plantão forense, para que permaneçam compatibilizados os princípios norteadores do sistema acusatório pátrio.

Além do mais, não se pode esquecer que a imparcialidade, que não se confunde com a chamada neutralidade científica, é a pedra de toque da atuação judicial e garantia maior de objetividade de qualquer julgamento. [2] Daí, a intervenção do juiz , de ofício, no que tange à produção de provas, não pode ser orientada por uma predisposição intelectual do magistrado sobre as possibilidades futuras de uma incerta relação processual ou por seu sentimento pessoal de justiça. Cabe ao Parquet, ao ofendido, ou ainda, ao réu o exame da necessidade, urgência e relevância da colheita de provas, na fase pré-processual. A intervenção direta do magistrado, em tal momento, compromete, sem sombra de dúvida, o pleno exercício do contraditório e a desejada imparcialidade do julgador.

De fato, “é difícil imaginar que um juiz ativo na fase de investigação possa ser, ao mesmo tempo, um magistrado imparcial no momento da decisão, porque a tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal é, por natureza, parcial e, no nosso sistema, realizada unilateralmente pelos órgãos oficiais incumbidos da persecução”.[3]

Recorde-se, todavia, que a compreensão do novo art. 156, I, do CPP é extremamente controvertida. Parte da doutrina vem proclamando tal dispositivo inteiramente compatível com a ordem constitucional vigente. Para tais doutrinadores, o ativismo judicial deve alcançar até mesmo a fase de investigação criminal. O juiz deve sair de sua sala e buscar a produção de provas de ofício. A ação penal é um múnus público. O magistrado criminal é pago pelo Estado para fazer justiça nos casos concretos aplicando a lei e a Constituição. Sua missão de fazer justiça não pode ser limitada pela suposição de quebra de imparcialidade e vício no julgamento a ser futuramente prolatado. [4]

Peço licença para deles discordar. O pacto republicano brasileiro não acolheu a figura do juiz inquisidor e a disposição do aludido art. 156, I, do CPP leva ao perigoso terreno da atuação judicial investigatória, subvertendo-se, assim, o sentido de um processo penal de matriz acusatória.

Além do mais, torna-se inaceitável, data venia, a idéia de que a atuação do Ministério Público, da Polícia e/ou do ofendido, na fase investigativa, é insuficiente, para o combate à criminalidade, legitimando, a partir daí, a visão do Juiz inquisidor. No Estado Democrático de Direito, cada órgão tem sua função, segundo o ordenamento jurídico em vigor, não se justificando, pois, a invasão “justiceira” de outra instituição.

A propósito, em situação análoga, referente à previsão da Lei 9.034/1995, que permitia ao juiz penal realizar pessoalmente diligências de colheita de dados sigilosos, em qualquer fase da persecução, o colendo Supremo Tribunal Federal proclamou a inconstitucionalidade de tal disposição, por ofensa aos princípios da imparcialidade judicial e do devido processo legal. Em suma, disse a Suprema Corte que os juízes têm competência para processar e julgar, mas não para investigar na esfera extraprocessual. [5]

Com efeito, filio-me à corrente doutrinária que proclama a inconstitucionalidade da expressão “ mesmo antes de iniciada a ação penal”, contida no inciso I, do art. 156, do CPP ( redação dada pela Lei 11.690/08). O ordenamento constitucional pátrio é claro. Nosso sistema processual é acusatório e exige a iniciativa das partes, para a instauração da relação processual. O impulso oficial é conseqüente. O princípio da verdade material não transforma o magistrado em um justiceiro nem em um agente arrecadador de elementos de investigação.

4. Fontes de Pesquisa Bibliográfica

BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal, tomo I, São Paulo, Elsevier Editora Ltda, 2008.
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direito fundamentais, .Brasília Jurídica, 2ed, 2000.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. De Carlos Nelson Coutinho, Rio de janeiro, Campus, 1992.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 3ª. Ed. Revista, atualizada e ampliada, 2008.
BRANCO, Paulo Gustavo; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília Jurídica, 2000..
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo, Editora Atlas, 18ª. Ed. Revista e atualizada por Renato N. Fabbrini, 2006.
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis Moura (coordenação). GOMES FILHO, Antônio Magalhães, PRADO, Geraldo, BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy, SANTOS, Leandro Galluzzi, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. As Reformas no Processo Penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2008.
SILVA, Ivan Luís Marques. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 10ª. edição, revista e atualizada, 2008.

[1] ADA PELLEGRINI GRINOVER, A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório, A marcha do processo, p. 80.
[2] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, Provas - Lei 11.690, de 09.06.2008, As Reformas no Processo Penal, p. 259.
[3] ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ob.cit., p. 260.
[4] IVAN LUÍS MARQUES DA SILVA, Reforma Processual Penal de 2008, p. 65
[5] STF, Pleno, ADIn 1.570/DF, rel. Min. Maurício Correa, j. 12.02.2004, RTJ 192/838.

Um comentário:

RUBEM FILHO disse...

Parabés ao Dr. Reynaldo Soares da Fonseca, maranhense que judica no Distrito Federal, pela contribuição.
O tema aqui tratado merece toda a atenção, não apenas pela recente inovação legislativa, mas, e principalmente, pela tomada de rumo determinada pelo legislador infraconstitucional a respeito do papel instrutório do julgador no processo penal.
Boa leitura.
Abraços,
Rubem